sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Comer arte

Assusta-me que com a proliferação de chefs e de competição gastronómica deixem de existir pessoas que apreciem genuinamente um bom prato. E que o melhor que se tenha a dizer do cozinhado alheio é um "Está muito bom!" carregado de ressentimento mal disfarçado pelo bom trabalho de um potencial rival na luta pela glória suprema no espinhoso Mundo da culinária. A culinária é levada tão a sério que muitas vezes fico sem saber o que fazer perante um prato... Provo-o ou tenho que lhe pedir desculpa primeiro? Ofereço-lhe um Prémio Nobel? Estendo-lhe uma passadeira vermelha no sistema digestivo? A ira do chef Gordon Ramsay perante uma vieira ligeiramente mal cozinhada consegue ser superior à ira de um cirurgião depois de um transplante de coração que correu mal! Alguém vai morrer à fome se tiver que esperar mais 5 minutos por uma vieira? Quando é que uma coisa que devíamos fazer para sobreviver se transformou nisto? Há poucos anos tínhamos sorte se sobrevivêssemos ao próximo Inverno e não existiam gordos. Havia um pequeno grupo que era o dos "mais fortes" (cujas características herdámos, embora possa não parecer) e o resto morria à fome. Com sorte, porque a alternativa era ser devorado por um tigre dentes de sabre (eu ia dizer Tyrannossaurus Rex, mas isto não precisa de ficar ainda mais estúpido). Hoje não nos contentamos em ser os maiores predadores, somos predadores cheios de mariquices. Não nos chega matar o animal, temos que o pôr a saber a uma coisa diferente e apresentá-lo com acompanhamentos com cores a combinar. Tudo isto organizado em forma de um desenho. Como se isso fosse importante. Somos tão evoluídos que já não comemos qualquer coisa, agora comemos obras de arte.

"Sai uma Mona Lisa para o senhor de bigode da mesa 8!"
"Este Picasso está mal temperado, posso provar um bocadinho do teu Andy Warhol?"
"Pode emoldurar os restos deste Renoir para eu levar para o meu cão?"

Isto é gozar com a Natureza e com uma necessidade tão básica como comer!

Sim, é pelo amor à comida que não cozinho nada de jeito.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O papel do homicida involuntário em histórias de amor ("There is a light that never goes out")




"And if a double-decker bus crashes into us
To die by your side is such a heavenly way to die."

Romântico, não? O problema é que ninguém se coloca na perspectiva do condutor do autocarro, que vai ter que viver atormentado pelos remorsos de ter destruído o futuro e as esperanças de um casal tão apaixonado. O que é que ele vai dizer à mulher e aos filhos?

- Hoje matei um casal. Um deles estava muito feliz, o outro nem por isso. Lembram-se quando eu era uma pessoa feliz e optimista? Foi ontem. A partir de hoje vou ser alcoólico e abusador. E também fã da Casa dos Segredos. Se é para entrar numa espiral destrutiva ao menos vou até ao fim.

É que dificilmente vai conseguir encontrar consolo no facto de um dos elementos do casal desejar tão ardentemente uma morte dramática e romântica. Porque, se calhar, ele não quer mesmo ser atropelado por um autocarro. Se num contexto romântico dizemos a alguém que lhe oferecemos o Sol, é porque sabemos que ninguém nos vai cobrar o Sol. Numa relação normal, ambas as pessoas sabem que o Sol queima e não fica muito bem na sala de estar.

(É um elemento que distrai muito e impossibilita totalmente que se veja televisão. Provavelmente teria que o guardar na dispensa. Se querem oferecer alguma coisa, ofereçam flores, candeeiros de lava ou outras merdas do género.)

Ser atropelado por um autocarro está nesta categoria de coisas que se dizem da boca para fora.

Hoje ia passando pela experiência de ser o catalisador do desfecho trágico de uma história do Nicholas Sparks, quando um jovem casal quase ficava debaixo do meu carro. Os pombinhos nem se aperceberam que quase risquei o "para sempre" da última página do seu conto de fadas. De tal maneira estavam trancados numa bolha de amor isolada do resto do Mundo, que na sua perspectiva não passa de um adereço tão irrelevante como um quadro do Menino da Lágrima, que se esqueceram da realidade. A diferença é que enquanto o Menino da Lágrima não sai do quadro para nos assassinar (dava um péssimo filme de terror, não mais do que isso), na realidade existem carros, cogumelos venenosos e fogões a gás. E é importante ter isto em conta, porque o amor não tem assim tanta piada se não estivermos vivos para o aproveitar. Acabei por não assumir o papel de cicuta naquele "Romeu e Julieta" dos tempos modernos. E ainda bem. Nem todas as relações precisam de acabar como a de Romeu e Julieta e prefiro que esta acabe por motivos mais comezinhos como mensagens difíceis de justificar no facebook ou a transformação de um deles em groupie do Tony Carreira. E não debaixo do meu Peugeot 206. Acabei de o arranjar e tudo!

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Tive um acidente e fui parar ao site do Correio da Manhã


Li este comentário numa notícia do Correio da Manhã sobre o funeral de uma das vítimas da tragédia do Meco, onde fui parar por acidente (tropecei numa casca de banana, caí em cima do PC e ele abriu aquele site do nada):

"PARA A PRÓXIMA TENHAM MAS É MAIS JUÍZO E PRECAUÇÃO ANTES DE SE AVENTURAREM NO Q QUER Q SEJA:OLHEM Q A MORTE ANDA SP.À ESPREITA E NÃO BRINCA EM SERVIÇO;E NA MAIORIA DAS VEZES NEM DÁ TEMPO DE FUGA!É TUDO CÉLERE DEMAIS!"

Era o comentário mais votado, seja lá o que isso quer dizer em termos de democracia. Dizer que isto é o Cavaco dos comentários àquela notícia talvez seja uma descrição justa.

Esta ideia de aconselhar cautela a pessoas que estão dentro de um caixão só está ao alcance de alguém especial. Não sei se isto é mau gosto ou se é um caso extremo daqueles bons conselhos que vêm tarde demais. Se ao menos este cidadão preocupado e cauteloso estivesse lá naquela noite... É mau gosto. E estupidez, também.

Talvez isto se trate da inauguração de um novo grupo de carpideiras cuja função não é chorar em funerais mas fazer com que os mortos se sintam culpados pela sua própria morte. Conselhos inúteis que levam para o outro lado. Podemos debater a existência ou não de tal sítio, o que não podemos debater é que, mesmo que exista um outro lado, estes conselhos vão continuar a ser inúteis.

"Para a próxima não escrevas SMS enquanto conduzes"
 "Para a próxima evita entrar em edifícios que vão ser alvo de ataques terroristas"
"Para a próxima veste um casaquinho"
"Para a próxima não encaixes tão bem na vitimologia daquele perigoso serial killer"
 "Para a próxima come antes uma peça de fruta"